A partir de agora, os
crimes contra a dignidade sexual perpetrados contra crianças ou
adolescentes, previstos no Código Penal ou em legislação especial,
somente iniciarão a contagem do prazo prescricional a partir do momento
em que a vítima completar 18 anos.
O artigo 111 do Código Penal Brasileiro regula o termo inicial do prazo
prescricional antes do trânsito em julgado da sentença (prescrição da
pretensão punitiva).
Até o advento da Lei 12.650/12 havia quatro hipóteses de início de contagem do prazo prescricional, sendo elas:
a) Do dia em que o crime se consumou;
b) Em caso de tentativa, do dia em que cessou a atividade criminosa;
c) Nos crimes permanentes, do dia em que cessou a permanência;
d) Nos crimes de bigamia e nos de falsificação ou alteração de
assentamento do registro civil, da data em que o fato se tornou
conhecido.
Releva observar que a contagem dos prazos prescricionais se faz de
acordo com a regra do artigo 10, CP, tendo em vista tratar-se de causa
extintiva de punibilidade, incluindo-se, portanto, o dia do começo.
[1]
Também é interessante lembrar que no caso de crime continuado a
prescrição é contada “isoladamente sobre cada um dos crimes componentes
da cadeia de continuidade delitiva”, nos termos do artigo 119, CP que
regula a contagem da prescrição no concurso delitivo.
[2]
Pois bem, com o advento da Lei 12.650/12 alterou-se a redação do artigo
111, CP para incluir um inciso V, criando assim um novo termo inicial
de contagem da prescrição antes da sentença. Esse novo termo se refere
aos crimes contra a dignidade sexual perpetrados contra crianças ou
adolescentes, sejam estes previstos no Código Penal ou em legislação
especial. A partir de agora, tais crimes somente iniciarão a contagem do
prazo prescricional a partir do momento em que a vítima completar 18
anos.
A iniciativa legislativa surge no bojo da chamada “CPI da Pedofilia” e
tem por escopo ampliar a proteção das crianças e adolescentes sob a
égide do Princípio da Proteção Integral (artigo 227, CF c/c artigo 1º.,
da Lei 8.069/90). Considera-se que o menor vítima de abusos sexuais na
infância ou adolescência pode, por diversos motivos (coação, problemas
familiares, medo, temor reverencial, inibição por vergonha etc.), quedar
calado sobre os fatos, ensejando a impunidade do agente pelo decurso do
prazo prescricional. A alteração o início da contagem para seus 18 anos
poderia, portanto, oportunizar-lhe mais tempo para tomada de uma
decisão quanto à denúncia do abuso, inclusive num momento de sua vida em
que já é um adulto.
Note-se, porém, que essa nova contagem de prazo somente se aplica aos
crimes contra a dignidade sexual perpetrados contra crianças ou
adolescentes. Não tem aplicação para todos os crimes contra a dignidade
sexual em que as vítimas não sejam menores e também não pode ser
utilizada para outros casos de infrações penais que tenham por vítimas
crianças ou adolescentes. Nem mesmo eventual analogia pode ser aplicada
por tratar-se de norma penal mais gravosa (“lex gravior”), o que
configuraria “analogia in mallam partem”.
Ainda nesse aspecto é interessante observar que a nova contagem somente
pode ter aplicação para crimes ocorridos após o início de sua vigência,
pois que em se tratando de “novatio legis in pejus” não pode ter efeito
retroativo. Efetivamente, aqueles que cometeram crimes contra a
dignidade sexual antes da entrada em vigor da Lei 12.650/12 continuam
com as contagens prescricionais em seus termos iniciais de acordo com as
regras anteriores do artigo 111, CP, pois que a Lei 12.650/12 é
prejudicial ao réu considerando que amplia o prazo extintivo de
punibilidade.
A regra do inicio da contagem apenas após o completar dos 18 anos da
vítima não é, contudo, absoluta. O novo inciso V do artigo 111, CP faz
uma ressalva ao determinar que a contagem inicie somente aos 18 anos da
vítima, “salvo se a esse tempo já houver sido proposta a ação penal”.
Então, há duas situações distintas dispostas na legislação:
a) Se, por exemplo, uma criança de 5 anos sofre abuso sexual e nunca
narra o fato, de modo que não é instaurado processo para apuração,
então o prazo prescricional somente correrá quando ela completar 18
anos;
b) Se a mesma criança de 5 anos é abusada, mas entre o lapso temporal
de seus 5 anos de idade até os 18 ocorre a instauração de processo
acerca do caso, o prazo prescricional passa a correr dessa instauração e
não mais da data em que a vítima completa a maioridade.
De qualquer forma a lei adita o início da contagem do prazo
prescricional, que não mais se contará pela regra geral da consumação
(artigo 111, I, CP), mas pelo atingimento dos 18 anos da vítima ou pelo
início do processo criminal.
É de observar que quando a lei estabelece que antes dos 18 anos da
vítima o prazo passa a correr com a propositura da “ação penal”, este
não correrá com a mera consumação, “notitia criminis” ou mesmo
instauração de Inquérito Policial a respeito do caso.
Resta saber se o mero oferecimento da denúncia já será suficiente para o
desatar do início da contagem. Essa certamente será uma questão que
suscitará amplo debate. Mas, entende-se que o prazo prescricional nessas
situações somente correrá antes dos 18 anos com o efetivo início do
“processo criminal”, mediante o “recebimento da denúncia” pelo
magistrado. Este será verdadeiramente o marco inicial ressalvado pelo
legislador antes da vítima completar a maioridade. A mera oferta da
denúncia não servirá para impulsionar a contagem da prescrição.
Ocorre com a redação do inciso V do artigo 111, CP, dada pela Lei
12.650/12 a recorrente confusão entre ação penal e processo criminal. Na
realidade a ação penal é um direito, o qual é exercido por intermédio
do processo, ou seja, o processo é o instrumento pelo qual o direito de
ação se concretiza, se realiza.
Como aduz Salles Júnior, “ação (...) é o direito de invocar o Poder
Judiciário para aplicação do direito objetivo a determinado caso
concreto” (grifo nosso).
[3] E o mesmo autor indica que ação não se confunde com processo.
[4]
Não há falar, portanto em proposição de uma ação penal e sim em
proposição de um processo por meio do qual se exercerá o direito de
ação. Quando o inciso V sob estudo menciona que a prescrição se iniciará
quando for “proposta a ação penal”, deve-se ler “quando for iniciado o
processo” respectivo. E o processo propriamente dito só pode se
considerar iniciado com o ato do recebimento da denúncia pelo Juiz, pois
que somente assim se poderá falar em formação de uma relação jurídica
enquanto “actum trium personarum”.
Não é outra a tradicional concepção
advogada por Goldschimidt com fulcro na teoria de Bülow, sustentando que
o processo é uma “relação jurídica”.
[5] E essa
relação jurídica se perfaz de forma tríplice, envolvendo as partes e o
juiz, tal qual estabelece o brocardo: “judicium est actus trium
personarum, iudicis, actoris, rei”.
[6]
Entretanto, a questão ora debatida não será pacífica, pois que há
entendimento de que o processo se inicia com o ato de oferecimento da
denúncia, inclusive com decisões do STF nesse sentido. Doutra banda há
julgados do STJ e do próprio STF afirmando que o início da ação penal
“se dá com o recebimento, uma vez que é o momento em que se
triangulariza a relação jurídica”.
[7] No seio
desse debate deve-se introduzir agora a nova disciplina do recebimento
da denúncia, com a previsão de uma resposta à acusação nos termos do
artigo 396 a 399 CPP, o que parece realmente reforçar a tese de que o
processo somente se pode considerar completado com o efetivo recebimento
da peça acusatória e não com sua simples formulação pelo órgão
ministerial.
Outro argumento forte para ter o recebimento da denúncia como termo
inicial da prescrição nos casos ora estudados é de índole sistemática.
Ora, se o tema tratado é prescrição, então eventuais marcos de contagem
devem ser interpretados de forma coerente, homogênea, sistemática. Assim
sendo, de acordo com a previsão do artigo 117, I, CP que estabelece o
recebimento e não a oferta da denúncia ou queixa como causa interruptiva
da prescrição, nada mais lógico do que ter esse marco também como a
exceção ao início da contagem da prescrição somente aos 18 anos nos
casos de crimes sexuais cometidos contra crianças e adolescentes.
Ademais, considerando a “mens legis”, que certamente visa conceder
maior elastério ao lapso prescricional, é de se concluir que o momento
posterior de recebimento e não da mera oferta da denúncia seja aquele
antevisto pelo legislador, a fim de conferir maior tempo possível a
assegurar o impedimento da extinção de punibilidade ocasionada pela
inação do Estado eventualmente motivada pela vulnerabilidade da vítima
criança ou adolescente.
Por derradeiro importa acrescer uma visão crítica acerca da alteração
legal. Inobstante toda a boa intenção do legislador em conferir proteção
integral às crianças e adolescentes, procurando evitar que a impunidade
de abusadores infanto – juvenis se dê pelas limitações e
vulnerabilidades naturais das vítimas perante seus algozes, é de se
questionar sobre a efetividade dessa medida.
Em um primeiro plano é visível que com as alterações procedidas pela
Lei 12.015/09, tornando a ação penal pública incondicionada sempre que a
vítima for menor (artigo 225, Parágrafo Único, CP), já se afastou o
principal problema relativo à extinção de punibilidade relacionado às
ações privadas e públicas condicionadas. Ele era referente ao prazo
decadencial e não prescricional. Os 6 meses para ingresso com a queixa –
crime ou a representação podiam gerar impunidade insanável se a vítima
posteriormente, ao completar maioridade, resolvesse tomar qualquer
providência, desde que o prazo decadencial houvesse decorrido “in albis”
para seu representante legal na época dos fatos, uma vez que o prazo
decadencial é “improrrogável, único e fatal”.
[8] Mas, com a ação pública incondicionada os problemas relativos à decadência deixaram de existir.
Essa observação pode fazer parecer que a alteração referente à
prescrição seria inócua no atual quadro. Na verdade, a medida operada
pela Lei 12.015/09, tornando a ação pública incondicionada solucionou a
questão da decadência, mas realmente o problema da prescrição poderia
prejudicar a punição de infratores que por qualquer razão contassem com a
inação da vítima menor. Por isso, as mudanças antes operadas pela Lei
12.015/09 não produzem, em verdade, algum deslustre à Lei 12.650/12, eis
que cada legislação trata de uma temática diversa e independente.
Na realidade o que pode tornar a Lei 12.650/12 nada mais que um adorno
ou uma mera perfumaria jurídica é um motivo de ordem pragmática
relacionado com questões de prova.
Os crimes contra a dignidade sexual já são naturalmente de difícil
comprovação, tendo em vista a sua prática normalmente oculta sem
testemunhas presenciais. O que se dirá quando se tratar com crimes
perpetrados há muitos anos. Imagine-se uma criança abusada aos 4 anos de
idade, que aos 18 anos ou mais adiante resolve tomar providências e
denunciar os abusos. Como se poderá obter a prova da materialidade
delitiva? Será que a palavra da suposta vítima poderá ser acatada com
grande credibilidade devido à passagem do tempo e às confusões
psicológicas e mnemônicas naturais ocasionadas? Se houver testemunhas,
como será resolvida a questão da memória?
Esses são problemas e obstáculos reais à efetividade da Lei 12.650/12,
os quais podem fazer com que haja um processo, mas que este resulte
quase sempre em absolvições nem sempre justas. Enfim, a lei será eficaz,
mas não terá efetividade.
Cambi salienta a distinção entre eficácia e efetividade:
“A eficácia diz respeito à concretização do ‘programa condicional’,
isto é, do vínculo ‘se – então’, abstrata e hipoteticamente previsto na
norma legal. Já a efetividade, concerne à implementação do ‘programa
finalístico’ que orientou a atividade legislativa ou a concretização do
vínculo ‘meio – fim’ que decorre, abstratamente, do texto legal”.
[9] Acrescente-se, em suma, que enquanto a “eficácia” é operacional, a “efetividade” é teleológica.
Certamente nada impedirá que a norma do artigo 111, V, CP, trazida pela
Lei 12.650/12 seja dotada de “eficácia”. Ela será aplicada aos casos
concretos em que não se reconhecerá a prescrição de crimes sexuais
contra menores fazendo a contagem pela data da consumação, mas somente
pela data em que estes completarem seus 18 anos. A questão é saber se
terá “efetividade”. Afinal o objetivo da lei é evitar a impunidade dos
infratores. Será que a lei conseguirá ser “efetiva”, tendo em vista as
questões pragmáticas no campo probatório? Conseguirá a Lei 12.650/12
alcançar sua finalidade, que é não deixar impunes os abusadores sexuais
de menores pelo reconhecimento da prescrição? Talvez pelo reconhecimento
da prescrição sim, mas talvez ou certamente não devido à ampla
probabilidade de tornar-se um manancial de absolvições por falta de
lastro probatório mínimo.